Por Giuli Romano*
O ano de 2022 marca o centenário da Semana de Arte Moderna, evento que oficialmente aconteceu no Theatro Municipal de São Paulo e contou com um grupo de artistas que veio a se tornar o emblema do que seria o movimento modernista nacional.
Um século depois, é natural os debates e críticas sobre a Semana de 22 emergirem – já não era sem tempo! – com críticas em aspectos diversos, seja pelo viés elitista, classista, ou até mesmo pelo questionável ideal em alcançar ou definir uma arte brasileira legítima.
Falando especialmente do recorte de gênero, a participação feminina na Semana de Arte Moderna de 1922 sofreu uma invisibilização, com pouco ou nada de protagonismo, relegando-se às grandes mulheres artistas o lugar de reprodução da “arte feminina”, o que fica evidente ao observar a historiografia posterior ao evento, na qual a relevância das manifestações artístico-culturais dessas mulheres foi em muitos momentos minimizada.
E hoje, cem anos depois, ainda é preciso reforçar e problematizar como tais discursos foram construídos.
As mulheres da Semana de 22
Ao olharmos para as mulheres que participaram da Semana de 22, é evidente a ausência de diversidade e representatividade dentro de uma minoria feminina. É de suma importância reconhecermos o lugar de fala dessas figuras: um lugar de privilégio e de acesso a um conhecimento e, inevitavelmente, um lugar que em muitos momentos reproduzia performatividades que iam ao encontro do ideário burguês e suas idiossincrasias.
Mesmo assim, isso não impediu que as artistas também sofressem duras críticas e censuras embasadas em estereótipos de gênero e idealizações do feminino, e não há dúvidas de que a participação dessas artistas mulheres colaborou de modo essencial na exploração de novos horizontes para a literatura, a música, as artes plásticas e para a produção cultural nacional de modo mais amplo. Por isso, mesmo tanto tempo depois, ainda é preciso relembrar essas mulheres, pois suas produções artísticas contribuíram para irromper novos olhares sobre a participação feminina nas artes, e legitimá-los.
A seguir, você pode ler um breve resumo, um ponto de partida para conhecer as mulheres que participaram da Semana de Arte Moderna de 1922.
Anita Malfatti (1889–1964)
Teve grande importância nas artes plásticas na primeira fase do movimento modernista brasileiro com as suas obras expressionistas, contribuindo para a produção de novas linguagens na cena artística paulistana.
Filha de estrangeiros, mas natural de São Paulo, a artista nasceu com uma deficiência no braço direito, e foi com a ajuda da sua governanta que desenvolveu a coordenação motora com a mão esquerda para conseguir escrever e pintar. Aos 13 anos, tenta cometer suicídio deitando-se na linha férrea, experiência essa descrita pela artista como determinante na sua decisão pela pintura:
“Foi uma coisa horrível, indescritível. O barulho ensurdecedor, a deslocação do ar, a temperatura asfixiante deram-me uma impressão de delírio e de loucura. Eu via cores, cores e cores riscando o espaço, cores que eu desejaria fixar para sempre na retina assombrada. Foi a revelação: voltei decidida a me dedicar à pintura.”
O expressionismo de Anita Malfatti incorpora fatores fundamentais da Arte Moderna, com uma expressividade profunda, com forte tensão e liberdade, em cores vívidas e pinceladas marcantes.
Sua obra rompeu com os cânones predominantes da época: o realismo, o naturalismo e o pós-impressionismo, com temáticas que faziam parte do seu cotidiano, como as várzeas da Barra Funda, lugar de inspiração dos aquarelistas da época e que Anita também frequentou bastante, já que morava na região.
A artista também deve ser reconhecida pelo seu engajamento na mobilização pela institucionalização das artes no Brasil. Foi membro do sindicato dos artistas plásticos e da Sociedade Pró-Arte Moderna (Spam); além disso, como era professora de formação, contribuiu na educação de muitos outros artistas.
Guiomar Novaes (1894–1979)
Considerada uma das maiores pianistas brasileiras do século XX. Nascida em São João da Boa Vista, no interior de São Paulo, Guiomar começou a tocar piano a partir dos 4 anos, incentivada pela família. A artista se apresentava desde muito cedo. Aos 7 anos, já sabia ler as notas musicais e, ainda criança, compôs a sua primeira valsinha, a obra “Jardim de Infância”. Também em sua juventude, Guiomar foi organista da igreja de Santa Cecília, bairro do centro da cidade de São Paulo.
Sua primeira apresentação profissional acontece em 1908, aos 14 anos, no Rio de Janeiro, na qual executa a “Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro”, de Louis Moreau Gottschalk.
Pouco antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial, a artista realizou grandes apresentações internacionais, especialmente na Europa – Itália, Inglaterra, Alemanha e Suíça –, ganhando assim relevância aos olhares da crítica.
Portanto, quando se apresentou em 1922 na Semana de Arte Moderna, a artista já trazia uma bagagem de reconhecimento fora do Brasil. Guiomar, inclusive, não era exatamente modernista. Sua participação na Semana de 22 se deu muito mais por causa do seu prestígio internacional, chamariz para despertar o interesse do público.
Além disso, Guiomar Novaes tem o título de Cidadã Honorária da cidade do Rio de Janeiro e foi representante da América Latina nas comemorações do 15o aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Organização das Nações Unidas.
Regina Graz (1897–1973)
Regina Gomide Graz é a pioneira das artes têxteis e decorativas no Brasil. Nascida em Itapetininga, estudou na Escola de Belas Artes e de Artes Decorativas de Genebra, Suíça.
A artista participou ativamente no cenário artístico como pintora, tapeceira e decoradora, principalmente entre 1920 e 1940. Foi a responsável por introduzir o estilo art déco no Brasil e grande entusiasta da autonomização das artes decorativas.
Apesar de o movimento modernista conter grande influência das vanguardas artísticas, propondo novas estéticas e rompimento com certos padrões, havia uma subvalorização das produções realizadas em suportes menos convencionais, como o das artes têxteis. Isso só reforça o caráter revolucionário da criação de Regina Graz, pioneira na construção de um novo mundo e modo de vida das artes aplicadas, ainda pouco difundidas no Brasil na época, dialogando diretamente com os valores da modernidade.
Regina Graz dedicou alguns anos da sua vida ao estudo da tecelagem indígena do Alto Amazonas. Sua obra também incluiu a confecção de almofadas, colchas, abajures em estilo cubista e art déco.
Infelizmente, por muito tempo a artista teve pouca notoriedade, sofrendo apagamento e menosprezo por causa da sua formação artística, sendo em muitos momentos vista apenas como uma colaboradora secundária, “esposa” ou “irmã”, já que era casada com o artista John Graz, com quem dividia a sua produção artística nas artes aplicadas, em projetos de decoração para as elites paulistas, e irmã do pintor Antonio Gomide.
Zina Aita (1900–1967)
Foi pintora, ceramista e desenhista, considerada precursora do movimento modernista em Minas Gerais, apesar do seu breve percurso no Brasil. Cursou a Academia de Belas Artes de Florença, mas foi em Belo Horizonte que realizou a sua primeira mostra individual, em 1920.
A obra de Zina destaca-se pela inovação no que diz respeito à composição, com o uso de cores fortes e subversão das harmonias cromáticas adotadas pelas artes plásticas mais tradicionais da época. Utilizando a técnica divisionista, característica do estilo neoimpressionista, em que as cores são representadas em pontos e pinceladas sem misturas de cor. Outra curiosidade: Zina Aita dificilmente nomeava ou datava as suas obras.
Sua participação na Semana de Arte Moderna contou com oito obras, com destaque para Homens trabalhando (1922), sua obra mais célebre, em que apresenta seis trabalhadores desdobrando-se em suas próprias sombras, enquanto do outro lado retrata apenas uma sombra maior, como uma figura de poder. Tal obra foi considerada por muitos críticos como uma das principais da Semana de Arte de 22.
Mesmo com a repercussão do seu trabalho na Semana de Arte Moderna e sua contribuição posterior à revista Klaxon, sua obra ainda é pouco conhecida. Já na Itália, onde participou de exposições coletivas, a artista teve maior reconhecimento com suas obras em cerâmica. No Brasil, a artista ainda é pouco estudada, mas é inegável a sua contribuição para a história da arte brasileira.
Ao conhecermos um pouco mais da trajetória das mulheres que participaram da Semana de Arte Moderna de 1922, é possível estabelecer uma crítica contundente sobre a ausência de mulheres negras nesse cenário. Porém, não podemos ignorar o relevante legado cultural que o evento deixou para a trajetória das artes no Brasil. Não à toa, estamos aqui, cem anos depois, discutindo e questionando suas nuances.
Vale ressaltar que, de forma alguma, as artistas aqui citadas esgotam a contribuição feminina para a arte moderna brasileira. Mas é fato que Anita Malfatti, Guiomar Novaes, Regina Graz e Zina Aita tiveram grande importância para a produção artística e cultural nacional, rompendo barreiras entre o erudito e o popular por meio de uma produção artística que, mesmo nutrindo-se de influências estrangeiras, teve como resultado algo genuinamente brasileiro.
*Giuli Romano é formada em Letras pela Universidade de São Paulo e já escrevia antes mesmo de aprender a escrever. Antes, trabalhou com design e produção gráfica e editorial, e hoje é especializada em produção, revisão e difusão de conteúdos multimídia. Atualmente trabalha com marketing e comunicação para empresas de diversos segmentos, ajudando a transmitir informações relevantes para o maior número de pessoas que puder alcançar.