Cem anos depois, a Semana de Arte Moderna de 1922 ainda é um tema central nas discussões sobre cultura no Brasil. Tema central que não escapa de polêmicas sazonais sobre seus méritos à época ou sobre seu legado na cultura do país nas décadas que a seguiram.

O compêndio lançado pelo Selo Sesc com as músicas e parte dos textos apresentados nos três dias de festival no Teatro Municipal de São Paulo é o resultado de pesquisas de Claudia Toni, Flávia Camargo Toni e Camila Fresca sobre o evento. Toda Semana: Música e Literatura na Semana de Arte Moderna, que está disponível para audição nas plataformas de streaming e no Sesc Digital (onde também é possível conferir seu livreto), oferece novos elementos de análise e fruição daqueles dias na São Paulo de começos do século 20. Dividido em 4 discos, o box se compõe de músicas, poemas e conferências. Longe de encerrar o assunto, é, antes de mais nada, uma fonte para novas pesquisas e uma maneira de desfrutar um certo Modernismo que se gestou entre nós.

Na música, o nome de maior vulto do evento de 1922 foi o então jovem compositor Heitor Villa-Lobos. Se contarmos as peças para piano-solo e canto separadamente, nada menos do que 20 obras de Villa-Lobos, à época com 34 anos, foram interpretadas nos três dias de festivais, mas curiosamente, nenhuma delas foi feita especialmente para a Semana. Entre os intérpretes, quatro pianistas participaram do festival para dar cabo às criações de Villa para diversas combinações de instrumentos, assim como piano solo – Lucília Villa-Lobos, Frutuoso Vianna, Ernani Braga e Guiomar Novaes, mas somente os dois últimos é que tocaram obras solistas.

A ambientação sonora daquela “festa de arte” moderna foi composta também por poemas e conferências. Com as falas sobre arte, articuladores, oradores e agitadores culturais tinham o papel de sintetizar em suas falas o espírito contestador do que se desenrolava no saguão e no palco do teatro. Graça Aranha, Menotti del Picchia, Mário de Andrade apresentaram suas análises sobre a arte que ali se desenhava e manifestava.

Já os poemas de Guilherme de Almeida, Ronald de Carvalho, Luís Aranha, Sérgio Milliet, Tácito de Almeida, Ribeiro Couto, Mário de Andrade e Agenor Barbosa que constam no box foram determinados através do cruzamento de informações (como notícias de jornais e relatos de quem esteve presente em determinado dia) feito pelas pesquisadoras envolvidas no projeto.

Toda Semana tem como intérpretes principais o violinista e maestro Cláudio Cruz e o pianista Cristian Budu e conta ainda com as participações de Ana Valéria Poles (contrabaixo), Antonio Meneses (violoncelo), Claudia Nascimento (flauta), Douglas Braga (saxofone), Homero Velho (barítono), Liuba Kletsova (harpa), Ricardo Ballestero e Ricardo Castro (piano), Mônica Salmaso (canto), Luca Raele (clarinete), Leandro Roverso (celesta), Robson Fonseca, Amanda Martins e Soraya Landim (violinos), Lígia Ferreira e Antonio Salvador (voz), e do Quarteto Carlos Gomes.

A seguir, você pode conferir trecho de texto de Flávia Toni e Camila Fresca sobre esse esforço de investigação sobre os sons da Semana de Arte Moderna de 1922. A íntegra do texto pode ser lida no livreto Toda Semana: Música e Literatura na Semana de Arte Moderna.


 


“Três festas de arte” ou a semana que sacudiu o Brasil

Por Flávia Toni e Camila Fresca

Parti com os meus melhores intérpretes para São Paulo. Demos três concertos, ou melhor, três festas de arte. No primeiro, o amigo Graça fez uma conferência violentíssima, derrubando quase por completo todo o passado artístico, só se salvando as imperecíveis colunas dos diversos templos de arte da Idade Média e, assim mesmo, porque eram gregas, romanas, persas, egípcias etc. Como deves imaginar, o público levantou-se indignado. Protestou, blasfemou, vomitou, gemeu e caiu silencioso. Quando chegou a vez da música, as piadas das galerias foram tão interessantes que quase tive a certeza de a minha obra atingir um ideal, tais foram as vaias que me cobriram de louros.

Escrita sob o impacto dos acontecimentos, a carta de Villa-Lobos a seu amigo Arthur Iberê de Lemos data de 20 de abril de 1922 e narra a reação do público paulista às obras mostradas pelo compositor, bem como dá uma ideia geral do clima que permeou os três “festivais” que acabaram passando para a história como Semana de Arte Moderna. Apresentado nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922 no Theatro Municipal de São Paulo, o programa incluiu palestras, exposição de artes plásticas no hall, concertos, um número de dança moderna, recitação de poemas e muita música de Villa-Lobos.

Recuperar a sequência exata dessas atividades e de seus participantes, no entanto, não é fácil, apesar de ter havido muita divulgação na imprensa local. Substituições de última hora, números não anunciados no programa e o não comparecimento de nomes aparentemente confirmados fazem com que a reconstituição do evento seja passível de controvérsias – entre outros motivos, porque a “memória” da Semana passou a ser assentada em livros publicados só muitos anos após seu acontecimento.

A programação musical apresenta poucas dúvidas, tanto sobre o comparecimento de intérpretes quanto em relação ao repertório, provavelmente porque os artistas recebiam cachê – a maioria deles veio do Rio de Janeiro, e havia a necessidade de ensaios. Na parte literária – aqui compreendidas as palestras e os poemas a elas vinculados –, alguns dados são tidos como seguros, mas persistem muitas dúvidas em relação aos autores que compareceram de fato e quais poemas e textos foram declamados, uma vez que as obras recitadas quase sempre ilustraram palestras e não eram discriminadas no programa.

Quanto à mostra de artes plásticas, apesar de as incertezas também imperarem, houve um catálogo específico, com capa diferenciada em relação à da programação geral, embora os desenhos tenham sido assinados, em ambas, por Di Cavalcanti.

Não se trata de mera curiosidade recuperar a programação literomusical da Semana de Arte Moderna, uma vez que os antecedentes das diversas tendências artísticas que se configuraram às vésperas da celebração do centenário da Independência do Brasil faziam convergir poesia e música dentro de um movimento orquestrado para celebrar a nacionalidade. Se já em meados do século XIX o espanhol José Amat (c. 1810-c. 1875) tentou produzir um teatro musical cantado em português e se Alberto Nepomuceno (1864-1920) advogou que quem não cantasse no próprio idioma não poderia dizer que tinha pátria, escritores e artistas como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Villa-Lobos foram decisivos na pavimentação de um senso artístico que veio a celebrar, entre outros, uma língua falada e cantada e que articulava poesia e música dentro de um sentido de ser “brasileiro”, como se observou ao longo do século XX. De fato, bossa nova, tropicália, música popular brasileira e todas as vertentes que amadureceram essa junção entre poesia e música são caudatárias dos manifestos e das criações artísticas que celebraram as conquistas propiciadas por novas dinâmicas de criação e liberdade de expressão estética. E acompanhar, de forma audível, os sons das músicas e dos poemas apresentados em fevereiro de 1922 no palco do Theatro Municipal de São Paulo nos auxilia a compreender as escolhas feitas por aqueles atores.


 

Toda Semana: Música e Literatura na Semana de Arte Moderna está disponível nas plataformas de streaming e no Sesc Digital. E também na Loja Sesc.